domingo, 11 de setembro de 2016
Conto: A botija de Ciço
A lua brilhava forte quando Ciço chegou ao local indicado no sonho. Pelos seus cálculos, faltavam poucos minutos para a meia noite...trazia consigo apenas uma velha pá e apesar de cansado, estava ansioso, afinal de contas, faltavam poucos minutos para tornar-se tão rico quanto os mais poderosos senhores de engenho das redondezas. Pensou um pouco e achou engraçado. Quem imaginaria que um caboclo “vei” como ele, que nunca teve nada na vida, seria escolhido para desenterrar uma botija?
Lá estava, de pé em meio as ruinas daquele antigo casarão. Em seu sonho, fora instruído a cavar sem olhar para trás, pois se o fizesse, falharia com sua missão e não receberia recompensa alguma. Respirou fundo, apertou a pá entre as mãos e começou a cavar...
Bastaram alguns movimentos para que Ciço começasse a ouvir um estranho e longínquo assovio que se aproximava lentamente, vindo de lugar nenhum. Junto a ele, um zumbido incomodo de mosca, que circundava sua cabeça incessantemente. Ciço fechou os olhos, concentrou-se ao máximo e continuou a cavar. Sabia que aquelas eram provações do coisa ruim, que não aceitaria o fato de um preto velho como ele, enriquecer de uma hora para outra. Foi neste momento que as vozes começaram...
O “quie” que “ce ta” fazendo ai seu ciço? – Era uma voz doce e familiar, que Ciço logo reconheceu como Luzia, a jovem e bela filha de seu patrão, A pesar de te-la visto crescer, a moça havia a pouco tempo, despertado desejos carnais naquele velho caboclo. Ciço cerrou ainda mais os olhos ao sentir o toque macio de Luzia em sua cintura, abraçando-o por trás
- Responde ciço! – Dizia a voz
Ele sentiu a língua molhada da jovem lamber seu pescoço
- Sempre soube que tu era louco por eu
Mesmo desconcentrado, Ciço continuava cavando
- Velho safado! Acha mesmo que teria alguma chance comigo? Para um preto como tu, a única felicidade é a morte – antes de ir embora a voz de Luzia sussurrou em seu ouvido – Velho broxa
Mas O velho não teve paz com a saída de Luzia. Pois logo em seguida, outras vozes vieram atenta-lo
- Ciço! O Ciço! Que porra é essa que tas fazendo?
- Só faz merda né Ciço?
Eram as vozes de Zeca e Inácio. Seus dois irmãos mais velhos, que a muito não tinha contato
- Espia só Inacio, ele acha que vai ficar rico!
- Esse vagabundo nunca soube fazer nada que preste! Mainha sempre dizia, Ciço faz isso! Ciço faz aquilo! E ele fazia? Fazia nada
- É...e pensar que mainha morreu por causa desse “infiliz”
Aquela última frase lhe trazia lembranças. Lembranças dolorosas, que a muito estavam enterradas em seu peito. Nervoso, Ciço começou a orar em voz alta, cantando louvores antigos, que pareciam afugentar as vozes para os mais longínquos umbrais. Mas infelizmente, o diabo não desiste não cedo...
Francisco? O que estas fazendo meu filho?
Ciço cessou as orações, estava paralisado a o recordar a voz de sua mãe
- Para com isso menino! Este dinheiro “num” é teu! Quem é rico nasceu rico, para nós resta apenas se contentar com o destino!
Ele voltou a cavar, seu corpo tremia, sentia suas lagrimas se misturarem ao suor em seu rosto, mas sabia que aquilo era falso, apenas uma nova parte daquela provação
-Vai me desobedecer de novo? Como naquele dia na linha do trem?
Aquilo havia ido longe demais. Apesar de sua pouca idade na época, a lembrança da morte de sua mãe nunca saiu de sua cabeça. Também pudera, havia passado sua vida toda se culpando pelo fato. Se não a tivesse desobedecido, se tivesse brincado longe dos trilhos nada daquilo teria acontecido... naquele momento, naquele único segundo de desespero, atormentado pelas lembranças, pelas lagrimas e pela culpa, Ciço olhou para trás...
Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte, por um grupo de boias frias que passava pelo local. Os médicos definiram infarto como a causa da morte e por não possuir posses para um enterro digno, Ciço acabou sendo enterrado lá mesmo pelo grupo de trabalhadores. Que logo espalhou pela cidade a história de Francisco, um caboclo velho e solitário, que pressentindo a chegada da morte, saiu com uma velha e enferrujada pá, para cavar sua própria cova.
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